Quaresma: procurar o Rosto e os rostos

Quaresma: procurar o Rosto e os rostos

Seg., 28 Fev. 22 Conhecer a Igreja Liturgia

Falar de Quaresma neste tempo de fragilidade e vulnerabilidade significa mais uma vez "rearranjar" as nossas prioridades, dando espaço ao que é realmente essencial...
 
De facto, de certa forma temos vivido a Quaresma desde o início desta pandemia inesperada que nos empurrou a todos para um deserto de medos, dúvidas, incertezas sobre o futuro, já de si precário. Um "micróbio do mal" parece dominar o mundo inteiro, infiltra-se nos pensamentos, nas relações, mantém afetos e amizades à distância; ameaça a saúde e não olha ninguém na cara... Um micróbio do mal está fazendo as pequenas e grandes cidades uma "Quaresma" que parece não acabar: estamos vivendo um tempo de jejum, silêncio, sacrifícios de todo o tipo; fomos involuntariamente atirados para este "barco" no aperto das ondas, dos ventos impetuosos.
 
Fomos apanhados pela tempestade nas praças, nas igrejas esvaziadas ... O deserto chegou a todos, nos locais de trabalho, nas áreas de lazer, nas escolas, onde vemos as crianças rigorosamente alinhadas à distância, com todos os protocolos a serem observados. Temos fome de normalidade, de uma vida quotidiana sem ruído que nos faz regurgitar as pequenas coisas do quotidiano, incluindo rostos.
 
O deserto, com a sua aridez assustadora, está despertando em muitos um desejo de abraços, de um aperto de mão, de um encurtamento de distâncias: desejamos retomar a vida com os seus limites e belezas.
 
Sim, acredito que a Quaresma já começou há muito tempo nas nossas vidas.
 
Com a Quarta-feira de Cinzas, continuamos simplesmente uma viagem litúrgica na qual, como cristãos, somos solicitados a tornar habitável esta extensão de solidão. Homens e mulheres, crianças e jovens, somos todos convidados a dar testemunho da Esperança que já é uma certeza: Jesus venceu! Absorveu todas as dores, absorveu todos os gemidos e choros.
 
Com a sua ressurreição, Jesus inaugurou uma "zona branca" universal para sempre e para todos. Um decreto inaugurado por Deus, que em Cristo se rebaixou para alcançar toda a humanidade: "Dar-vos-ei um coração novo, e porei dentro de vós um espírito novo; tirar-vos-ei do vosso corpo o coração de pedra, e dar-vos-ei um coração de carne" (Ezequiel 36,26).
 
Um novo coração e um novo espírito são a promessa de regeneração espiritual. Após a purificação através do julgamento e do sofrimento, está prestes a amanhecer o alvorecer de uma nova era, que o profeta Jeremias já tinha anunciado quando falou de um "novo pacto" entre o Senhor e Israel (cf. 31:31-34).
 
A humanidade, de fato, está destinada nascendo para uma nova existência. O primeiro símbolo é o do "coração" que, em linguagem bíblica, se refere à interioridade, à consciência pessoal. O "coração de pedra", frio e insensível, o sinal de obstinação no mal, será arrancado do nosso peito. Deus colocará nele um "coração de carne", ou seja, uma fonte de vida e de amor (cf. v. 26). Se prestarmos atenção, começamos a ver os sinais deste coração renovado e reparamos nas coisas simples de cada dia: aquelas acções que sempre tomámos como certas, incluindo tomar um café ou ir dar um passeio...
 
Estamos todos no mesmo barco, dos mais pobres aos mais poderosos; estamos todos neste barco, como disse o Papa Francisco no dia 27 de Março de 2020. Como aqueles discípulos que falam a uma só voz e angustiados dizem: "Estamos perdidos", também nós nos apercebemos de que não podemos avançar sozinhos, mas apenas juntos. Um apelo urgente ressoa: "Arrependei-vos, voltai a mim de todo o coração" (Joel 2,12). Vós nos chamais, Senhor, a abraçar este tempo de provação como um tempo de escolha. Não é o momento do seu julgamento, mas do nosso julgamento: o momento de escolher o que conta e o que passa, de separar o que é necessário do que não é. É um tempo para reiniciar o curso da vida em relação a ti, Senhor, e em relação aos outros. E podemos olhar para tantos companheiros de viagem exemplares que, com medo, reagiram dando as suas vidas. É o poder de trabalho do Espírito derramado e moldado numa dedicação corajosa e generosa. É a vida do Espírito capaz de redimir, melhorar e mostrar como as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns, geralmente esquecidas, que não aparecem nas manchetes.
 
Estamos neste barco e vamos atracar, e será Páscoa para todos!
 
Sim, estamos vivendo a Quaresma, especialmente aqueles que perderam os seus empregos, aqueles que tiveram de fechar um negócio, aqueles que perderam os seus afetos, dignidade, equilíbrio. É uma cinza que cheira a fogo, a madeira de oliveira queimada, sinal de paz ou reconciliação.
 
Uma pitada de cinzas inaugura a Época Litúrgica da Quaresma e orienta o caminho que devemos continuar a percorrer, sustentado pela Escuta da Palavra do Senhor, os Sacramentos, o jejum que se torna caridade partilhada.
 
A Época Litúrgica da Quaresma chama à escuta...
É tempo de ir, de ficar onde estamos, com as luzes e sombras que fazem parte da vida humana... É tempo de ir onde o coração está inquieto e procura apoio, faz perguntas e aguarda respostas. A facilidade com que podemos chegar a países distantes é por vezes incomparável à dificuldade que temos em manter silêncio e rezar sem pedir, sem qualquer outra pretensão que não seja a de estar perante o Mistério de Deus em absoluta gratuidade: Escuta, Senhor, a minha voz. Eu grito: tenham piedade de mim! Responda-me. O meu coração disse de vós: "Procurai o seu rosto". O teu rosto, Senhor, eu procuro. Não escondas de mim a tua cara (Salmo 26).
A todos os que procuram o seu rosto
mostrai-vos, ó Senhor;
a todos os peregrinos do absoluto
Aparece, Senhor;
com todos aqueles que se puseram a caminho
e não sabem para onde ir
andar, Senhor;
Andar lado a lado e caminhar com todos os que estão desesperados
nas estradas de Emaús;
e não se ofendam se não souberem
que é você que vai com eles,
você que os faz inquietos
e pegarem fogo aos seus corações;
eles não sabem que o levam para dentro:
Pare com eles, pois é noite
e a noite é escura e longa, Senhor.
(Davide Maria Turoldo)
Rezemos:
Está para além de tudo... tudo canta para si. Comuns são os desejos de cada ser criado. Comuns são os gemidos que o rodeiam. Todas as coisas chamam por si em supplicar a oração. A Ti é dirigido um hino de silêncio: todos os seres que contemplam a Tua ordem pronunciam-na. É apenas para Ti que todas as coisas perduram. É apenas por Ti que todas as coisas se movem, de movimento universal. E de todas as coisas Tu és o cumprimento: um, todos, nenhum, embora Tu não sejas nem um nem todos. Sê gracioso, Tu, o além de todas as coisas (São Gregório de Nazianzus).